terça-feira, 6 de setembro de 2016

Arregaçar as mangas e respirar fundo

Aproxima-se a passos largos a semana de todas as adaptações. O mano do menino azul vai para o JI público, sinónimo de adaptação a escola nova, educadora nova e colegas novos. Eu conhecerei alunos de 4 turmas e terei de adaptar-me a quase 100 personalidades. O menino azul vai para o 2º ano, com a mesma professora e com a mesma turma. Será por isso mais fácil, certo? Errado. A julgar pelo ano passado, prefiro mentalizar-me para o pior, já que o ano passado, achava eu que estava mentalizada e foi dos piores da minha vida. Vivi na pele o que já sabia há muito: que a sociedade é podre e que a escola é arrastada por esse tsunami de preconceitos e exigências e que não está preparada para a diferença. Eu, que passo os dias a pregar aos alunos a beleza da diferença e da abertura de horizontes, sinto que tenho de fazer o mesmo, mas agora, a colegas de profissão: "não enfiemos todos no mesmo saco, não olhemos para os alunos como números, mas como seres humanos diferentes que são". Foi um ano de lutas exteriores e interiores, de queixas, de recados, de telefonemas, de muito choro solitário, de muitas insónias.

Sempre adorei o Setembro, é o voltar a fazer o que se gosta, é a expectativa, é o gosto do desconhecido, o não saber o que aí vem. É o regresso à azáfama. Ainda aproveitando o espírito de férias, vejo o Setembro como aquele caminho que se faz até à ponta da prancha antes do salto para a água. Mas como diz a sabedoria popular "gato escaldado de água fria tem medo" e experimento agora este sentimento agridoce de querer que o ano lectivo comece e não querer. Embora me sinta mais preparada para enfrentar certas situações, tenho receio por ele, pela família e pela minha sanidade mental. Setembro, sê gentil connosco, por favor!

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Coisinhas do -ismo #2

O menino azul comeu bem e de tudo até quase aos 3 anos. Depois começou a recusar alimentos e estamos, actualmente, na pior fase de selectividade alimentar. É uma característica inerente às PEA, mas um desafio no nosso, já atribulado, quotidiano. A hora da refeição piorou drasticamente com a entrada no 1º ano. Estou convencida que os cheiros e as diferentes texturas a juntar às luzes fortes do tecto e confusão que fazem, naturalmente, tantos meninos, não o permitem estar sentado à mesa. Em casa, aguenta-se melhor, embora prefira sempre acabar de comer num instante para se poder levantar e "ir à vida dele". Quanto à comida em si é uma luta. Até a temperatura é um problema, sempre foi muito "queimadiço", agora percebo com a questão sensorial, mesmo quando está pouco quente, para ele "está a ferver". Quanto aos alimentos, poderei listar cerca de 10 que ele gosta e tolera, 10. Espalhados por pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar. A par com esta obsessão por certos alimentos, há a rejeição e recusa por experimentar outros e há ainda aqueles que lhe causam uma repulsa digna de meltdown, como é o caso do arroz...acho que reagiria melhor se tivesse o próprio Diabo à sua frente. Para além do paladar hipersensível ainda temos o olho de águia, que consegue ver uma gota microscópica de molho numa massa virada para baixo. Ainda há forma de tudo isto se tornar pior? Há, se estivermos a comer com alguém que gosta de opinar e apresentar maravilhosas teorias que podem resultar em neurotípicos, mas que pouco dizem nestes casos. E lá temos nós de explicar que está a comer a massa toda, mas isso não quer dizer que não coma o resto, simplesmente come por texturas, enquanto aproveita para criar formas com a comida que vai ficando no prato. O lado positivo? Quando come algo "novo" e gosta, é uma festa!

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Amar e aceitar não são, necessariamente, sinónimos

O diagnóstico chega e, no nosso caso, não é uma verdadeira surpresa, porque há muito sabíamos que algo "não estava bem". E aceitamo-lo, mas será que o aceitamos realmente? Exteriormente, aprendi a aceitar as diferenças do menino azul e luto contra quem vier pôr a sua felicidade e bem-estar em causa. Mas e cá dentro? Será que aceito real e incondicionalmente? Acho que é um caminho e que ainda o estou a percorrer, talvez todos os dias aceite mais um bocadinho, talvez não. Eu posso amá-lo incondicionalmente e não aceitar que o professor de natação o esteja a chamar para sair da piscina e ele continue a nadar alegremente. Mas pergunto-me, estou preocupada com a possibilidade de ele se envergonhar ou com a possibilidade de que eu me sinta envergonhada perante os olhares julgadores dos outros pais? Na verdade, ele não liga minimamente a esses olhares (por agora) e está no seu mundo a fazer algo que adora, mas onde estou eu? É esta luta interior de baixar as expectativas, ser realista, não exigir demais, mas ao mesmo tempo querer puxar por ele, rezar por progressos, aceitar as coisinhas do -ismo, revoltar-me com as coisinhas do -ismo...é esta luta interior diária que devasta. Estarei sempre a compará-lo com os outros meninos? Conseguirei alguma vez libertar-me das expectativas? Bem sei que todos os pais querem que os nossos filhos sejam bem-comportados, consigam fazer isto e aquilo, conquistem isto e aquilo, mas será que queremos por eles ou por nós? Para nos sentirmos bem enquanto pais, para podermos brilhar em conversas com amigos?

Sei que tenho de comparar o menino azul com ele mesmo. Como estava há dois anos, o que fazia o ano passado e faz hoje, o que evoluiu nos últimos meses. Sei que devo ficar feliz com as pequenas vitórias. Sei que devo alegrar-me quando ele navega pelo menu da box sem hesitar e sem um piscar de olhos. Sei que devo alegrar-me quando introduz expressões em inglês numa conversa, no momento certo. Sei que devo alegrar-me quando cede ou abdica de algo para ver o irmão feliz. E alegro-me, acreditem. Mas serão estas conquistas suficientes para calar esta voz interior? Sei que tenho um longo caminho a percorrer no processo de aceitação, só espero que não me faltem forças para enfrentar e saborear cada etapa.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Coisinhas do -ismo #1

Muitas crianças autistas verbais têm por hábito repetir, continuamente, coisas que ouvem, a isto chama-se ecolalia. Podem repetir na hora ou, como no caso do menino azul, ir guardando no "disco" para usar mais tarde. Por isso viver cá em casa é quase como viver num cinema. Ele memoriza frases que depois reproduz em conversas ou enquanto brinca. Repete até à exaustão e ao longo do dia. Muitas vezes passa despercebido aos demais, por não conhecerem a fonte das tais frases, mas para quem conhece sabe que quando ele quer comer qualquer coisa e pergunta "a sopa? Onde está a sopa?" em perfeito sotaque francês está a reproduzir o chef do Ratatui ou quando acorda e me diz "tive um pesadelo horrível e acordei a pensar quem sou realmente" sabe que é a fala perfeita da Smurfina, nos Smurfs2.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O que aprendi em 12 anos de casamento?

Agosto para além de ser o mês de nascimento do menino azul é também quando fazemos anos de casados. E já são 12, juntando os 9 de namoro, é uma vida em conjunto. O que aprendi em 12 anos de casamento? Que nunca será perfeito e não faz mal. Quem olhe para nós talvez comente o quão somos diferentes, mas se calhar é aí que está o segredo da longevidade. Sempre me fez confusão aquela ideia romântica, tantas vezes retratada em filmes, como Jerry Maguire, por exemplo, de os apaixonados se completarem um ao outro, "you complete me". Cá eu defendo que cada um tem de lutar, por si, para ser o mais completo e uno possível, como indivíduo, pois só assim será melhor na relação com os outros. Prefiro a ideia de se complementarem, faz-me mais sentido. Acho que assim que nos conseguimos libertar das ideias pré-feitas de como um relacionamento deve ser e começamos a viver o que resulta connosco, muita coisa se descomplica. Por exemplo, é assim tão errado o casal ter gostos diferentes? É certo que há momentos de fazermos coisas a dois, há momentos de fazermos coisas em família, mas acho que também devem haver momentos para cada um viver as suas paixões, que podem não coincidir. Se ele gosta de futsal e eu gosto de zumba, se ele é todo das lógicas e matemáticas e eu das artes e letras, se ele é o meu "gps humano" (algo que o menino azul herdou tendo em conta a rapidez que decora caminhos) e eu com um fraco sentido de orientação, assim são as nossas personalidades, diferentes e marcadas como convém. Em compensação, gostamos ambos de conduzir, de dançar, de estar com os nossos filhos. E assim vamos vivendo com as nossas diferenças, com altos e baixos como qualquer casal, com desafios diários como em qualquer casamento. O mais importante de tudo é mantermo-nos unidos, respeitando as nossas especificidades, porque Agosto foi o mês que escolhemos para casar, mas todos os dias escolhemos ficar casados.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Vitórias de Verão

Apesar de todas as expectativas externas, tenho-me permitido ficar feliz com pequenas conquistas, que talvez não sejam assim tão mínimas. Passámos este fim de semana XL em família e há muito a assinalar: dormir fora de casa, num ambiente totalmente novo e conseguir adaptar-se a isso; passar três dias sem TV, que é um escape e um elemento que traz alguma sensação de segurança; depois de conhecido e dominado o ambiente, andar pelo espaço da piscina sozinho, subindo e descendo do escorrega (combatendo o medo quando as escadas abanavam um pouco mais), bem como saltitando de piscina em piscina, conforme os apetites; andar pelo Portugal dos Pequeninos, apinhado de gente, num dia de muito calor, sem se afastar (muito) dos pais. É pouco, dirão alguns, para mim foram vitórias que souberam pela vida. Está um crescido o meu menino azul!


quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Baterias: cada um recarrega à sua maneira

Quem me conhece sabe que não sou propriamente tímida (embora não me dê logo a conhecer, longe disso), está habituado a ver-me a falar para salas cheias de gente, a ser simpática, espalhando sorrisos e participando em conversas. Mas a verdade é que sou uma introvertida. Não sou anti-social, mas sei que preciso de momentos a sós comigo. Se há coisa de que sinto falta, desde que fui mãe, é disso. São poucas as ocasiões em que, a não ser para ir trabalhar, consigo estar sem os miúdos. Mas quando o consigo, onde está escrito que tenho de ir jantar fora ou ir a uma discoteca ou ir ao cinema? Sim, de vez em quando apetece fazer essas coisas, mas qual é o mal de querer estar em sossego? Por que não querer ouvir o silêncio, que é algo tão raro quando se tem filhos, a não ser que estejam a dormir, e mesmo assim a qualquer momento isso pode mudar? Por que não ouvir música de olhos fechados, estar só com os seus pensamentos e reflexões, escrever? É certo que um café com amigas, uma aula de zumba tudo isso é revitalizante, mas nada me recarrega mais baterias que estar comigo. Mesmo quando estou com eles, se conseguir 5 ou 10 minutos de paz só para me equilibrar antes de continuar o caminho, faz toda a diferença.

Não só os filhos, mas também os alunos e, na verdade, as pessoas em geral sugam-me a energia e é sozinha que reponho os níveis. Poderão chamar-me egoísta ou achar-me demasiado centrada em mim. Tal não corresponde à verdade, sou uma pessoa espiritual que acredita que somos uma parte de um todo e só quando dominamos/estamos em paz e harmonia com a parte, poderemos integrar um todo. Além disso, como podemos nós pôr gasolina se não pararmos o carro?

domingo, 7 de agosto de 2016

"O que há em mim é sobretudo cansaço"

Ontem chorei de exaustão. Depois de dois dias de correria em preparativos para a festa de aniversário do meu menino azul, quando finalmente lavei e arrumei tudo, senti uma descarga de adrenalina e energia a esvair-se de mim e não aguentei. "Como consegues?" perguntou-me uma amiga na festa "és doida em fazer isto tudo". Talvez. Mas que ele estava radiante e rodeado de sorrisos e amor, lá isso estava e isso faz com que a minha dor de pés e lágrimas de cansaço sejam meros detalhes sem importância. Porém, pôs-me a pensar. Acho que o meu estado normal, de há 7 anos para cá, é sentir-me cansada. Li, há dias, um estudo que comparava o stress vivido por uma mãe de autista ao stress de um combatente em batalha. Comparações à parte e mesmo sem contar com o "filho da mãe do -ismo", o cansaço abate-se sobre mim diariamente.

Começou logo com as licenças de maternidade de um mês apenas, por cada filhote. O trabalho a recibos verdes - e a necessidade de ter, isso mesmo, um trabalho - assim o obrigou, embora tivesse que lidar não só com o cansaço permanente, com as emoções e hormonas próprias do momento, com o facto de andar de bomba e geladeira atrás e com as brilhantes tiradas de outras "ai, se fosse eu não conseguia!", sim porque eu estava a fazer aquilo por puro prazer (leia-se a ironia)...Depois da ida precoce para o trabalho, tivemos as noites mal dormidas e isto durou até bem tarde, porque o menino azul sempre acordou muitas vezes de noite e sempre acordou bem cedo de manhã. Ora bem, o que veio a seguir? Ah sim, mais um filho. Porque sempre quis ter filhos com pouca diferença para brincarem juntos e terem mais cumplicidade, etc. etc. mas sem perceber na totalidade o outro lado da questão: ter dois "bebés", praticamente, mas sem serem gémeos, logo ainda dependentes mas em fases diferentes, um fartote, portanto. Juntamos a tudo isto a profissão que tenho, e sempre desejei ter, e contamos com aulas para preparar, testes e trabalhos para corrigir e tudo pro bono, porque o recibo verde só paga a aula, pois claro. Mais uma pitada de stress até se conseguir um diagnóstico e mais o stress para interiorizar o diagnóstico recebido. Não falemos nas tarefas domésticas, que essas estão sempre à espreita e não se fazem esquecer. E ainda tenho quem me pergunte "Então para quando o lançamento do terceiro livro?", ao que respondo sarcasticamente "primeiro tenho de o escrever".

Respondendo à minha amiga, nem eu sei como consigo, mas não sou especial nem mais forte por o conseguir, porque também eu sigo o caminho a improvisar, com um sorriso nos lábios, mas com muitos momentos de lágrimas solitárias. E se ando sempre de mãos ocupadas, deviam ver o meu coração...esse transborda de amor.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Adeus esponja amarela, olá pássaros zangados!

Daqui a dois dias é dia de festa e como vão ser dois dias de preparativos, adianto já o post. 7 anos. E que ricos foram eles. Tivemos de tudo: sorrisos, frustrações, baldes de água fria, alegrias e muitas, muitas memórias, tal como em qualquer outra família. Quem conhece as PEA sabe que a obsessão é prato do dia e cá em casa não é excepção. Aqui funciona por fases. Tivemos a fase do Spongebob e tudo era Spongebob e para outros pais que estejam a pensar "isso também os meus têm, fases em que gostam mais de um boneco", explico-vos que não se trata de gostar mais, é respirar aquilo de manhã à noite. Músicas, vídeos, jogos, brinquedos, falas repetidas entredentes ou aos altos berros, escrever o nome e desenhar o boneco 50 vezes, fazer a forma do boneco no prato com a comida. De manhã à noite. Até que o proibi de ver Spongebob. Teve de arranjar nova obsessão. Já passámos pela Casa do Mickey, pelo Jake e os Piratas da Terra do Nunca e, actualmente, estamos nos Angry Birds e Pacman.

Lá vai a mãe passar horas a fazer um bolo dos Angry Birds, como fez do Spongebob o ano passado, e como fará para o ano, da nova obsessão, assim ele lhe peça. E como quero que me peça. É sinal que o mundo continua no sítio, que o nosso mundo continua no sítio. E as horas e o stress dos preparativos são esquecidas ao primeiro sorriso. Aquele sorriso rasgado de menino feliz, que me esforço para que seja e que o seja para sempre.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Não toca piano nem fala francês

A sociedade tem vindo a criar expectativas face às crianças que nunca se viu antes. Têm de pertencer ao quadro de honra devido às suas notas, têm de saber tocar piano ou ser o próximo Cristiano Ronaldo e jamais se admite que não falem duas línguas aos 10 anos. Posso estar enganada, mas antigamente o que se pedia às crianças não era que fossem crianças? Tão somente isso? "O teu único dever é saíres-te bem na escola", não era assim o modo de pensar? O que aconteceu ao mundo, em duas décadas, que não aceita nada abaixo da excelência? As "pequenas" coisas já não são tidas sequer como conquistas, porque não são mais que a obrigação.

Pois nada como ter uma criança diferente para nos pôr as coisas em perspectiva. Ainda não consegui que tivesse uma actividade extra, um desporto, tentámos a natação, não resultou, tentámos a ginástica, não resultou e iremos tentar certamente mais, mas respeitando o seu ritmo. Enquanto outras crianças, aos 4 anos, já andam no ballet, no futebol ou no judo, o meu vai fazer 7 e ainda não frequenta nada. E então? Além disso, cá em casa celebram-se as pequenas conquistas que são, afinal, grandes!

Enquanto outras famílias inscrevem os filhos em campos de férias e ficam descansados com os seus filhos a fazerem escalada, canoagem, jogos da praia, eu fico feliz com o facto de conseguir estar a fazer um castelo na areia sem medo que ele me desate a correr areal fora (o problema actual tem sido querer ir cada vez mais longe na água, mas é mais controlável). Fico feliz que tenhamos ido esperar o tio ao aeroporto e tenha conseguido esperar quase uma hora. Sim, a meio tivemos de recorrer à electrónica, mas ainda assim uma vitória, visto que só dizia "está muita gente e as pessoas estão a encurralar-me". Fico feliz que tenhamos ido ao cinema pela primeira vez e tenha visto o filme todo, sossegadinho e interessado, apesar do escuro e, pior, apesar do som alto. Fico feliz que tome banho, se dispa e vista sozinho. "Não faz mais que a sua obrigação aos 7 anos", dirão alguns. Talvez, mas o esforço que ele faz diariamente para conseguir coisas, que os outros atingem naturalmente, tem de ser celebrado. Não digo que se baixem as expectativas, digo que prefiro criar crianças felizes em vez de perfeitas.

domingo, 31 de julho de 2016

Viver com o filho da mãe do -ismo

O diagnóstico veio tarde, mas não foi por isso que tivemos mais tempo para nos preparar. Nenhuma mãe nem nenhum pai está preparado para lidar com um filho com uma diferença, seja ela qual for. Sou professora e todos os alunos que já tive podem testemunhar que sempre estimulei a diferença, o pensar fora da caixa, o desbravar caminhos novos, o não se contentarem com o "normal", o comum, o banal. E o mesmo continuarei a pregar. Mas quis a ironia do destino que a diferença me caísse, literalmente, no colo. "Bem, mãe, ele está dentro do círculo das perturbações do espectro do autismo", afirmou a neurologista. Toma lá este soco no estômago. Mas sabem o mais engraçado? Se sentimos dor, medo, ira, desespero quando ouvimos um diagnóstico destes? Sim. Mas o que senti mais? Alívio. Finalmente, ao fim de 6 anos, tinha um nome. Os rótulos são terríveis e nada pior para uma adepta do lema "vive e deixa viver", mas o meu lado pragmático gritava por um nome. "Agora que sei que é isto (embora não fizesse ideia, na altura, o que era realmente), há que arregaçar as mangas e pôr mãos à obra", pensei.

Passei este último ano com o nariz enfiado em livros da especialidade, em sites e fóruns do tema, bebendo de experiências narradas por esta internet fora. E sei que estou no caminho certo, agora. E não há melhor sensação que essa. Sentir que cada dia que passa entendo um pouco melhor o meu filho. Entendo melhor o seu presente, entendo finalmente o seu passado e procuro entender para construirmos juntos o futuro. De repente, a alvorada às 6 da manhã, o não responder ao seu nome, especialmente quando desatava a fugir na rua, o comer por texturas, a obsessão pelos puzzles, o fazê-los de tantas peças, sem olhar para o desenho, a memória para as canções, para as falas dos filmes, a rigidez nas rotinas, o tapar de ouvidos a qualquer barulho diferente ou alto, o fugir em momentos de frustração ou confusão, o olhar para as coisas e para o ambiente à sua volta como quem vê algo que os demais não vêem...de repente, tudo isso se clarificou.

Apesar de ser este o diagnóstico, é na sua forma ligeira, o que temos de agradecer e lutar todos os dias para atenuar comportamentos, celebrando cada conquista. Às vezes, penso que o problema não está nele, mas em todos nós, que não paramos para pensar e compreender que existem várias formas de olhar o mundo. A lente dele tem apenas uma resolução diferente.


"Aos seis assenta, aos sete adenta, ao ano andante."

Ao longo de décadas, a sabedoria popular foi-nos mostrando os "prazos" esperados de um bebé. Espera-se que se sente aos 6 meses, que se ponha em pé aos 9, que ande sozinho aos 12 e que forme frases aos 2 anos. No entanto, desafiando um pouco esta espécie de tabela milenar, existe a célebre ideia de que "cada criança tem o seu ritmo". Mas como conseguimos distinguir entre o ritmo de cada criança, o exagero materno ou ainda a existência de um problema real? Infelizmente, não há uma tabela que possamos consultar para isso. E se juntarmos o facto de se ser mãe de primeira viagem, as coisas complicam. E, por favor, não vamos esquecer que todos em redor têm uma opinião. O problema é que são sempre contraditórias. Vão desde as velhas discussões "o menino já bebe água? Já devia beber água!" à "ainda não anda? Tem tempo, depois não vai parar". Onde ficamos nós? Soterradas debaixo dos comentários alheios e dos próprios medos e expectativas. Estarei a exagerar? Talvez seja melhor esperar. Mas esperar até quando? Quando é o momento certo para "panicar"?

Agora, olho para trás e vejo sinais. Muitos sinais. Praticamente não falar aos 3 anos, andar em bicos dos pés durante muito tempo, um desfralde difícil (bota difícil nisso), entre muitos outros. Os mais rápidos no gatilho do julgamento estarão a perguntar-se "então e não fizeste nada?". Fiz o que pude com o que tinha e sabia na altura. A culpa de "panicar" tão tarde, independentemente da dificuldade em ter ajuda quando o fiz, andará sempre comigo. Já me acusaram de ser ponderada demais. Talvez, mas haverá certamente defeitos piores.


sexta-feira, 29 de julho de 2016

Rápidos no gatilho do julgamento

Antes de se ser mãe ou pai tem-se todas as teorias e mais algumas de como educar os filhos. Assistir a uma birra no supermercado é o suficiente para um revirar de olhos, um comentário "havia de ser meu filho que eu fazia e acontecia" enquanto se lança um olhar de desdém àquela mãe incompetente. Embora isto possa ser compreensível, se bem que se as pessoas se pusessem mais no lugar dos outros em vez de criarem estátuas delas próprias a todo o instante o mundo melhorasse, quando são mães e pais com esse julgamento, ainda me faz mais confusão.

Se vir uma criança a fazer birra não assuma que não tem regras nem disciplina em casa, que a mãe está a educar mal os seus filhos e não lance labaredas pelos olhos. A verdade é que não sabe nada sobre aquela criança nem sobre aquela mãe, não sabe que batalhas estão elas a travar, não sabe que tipo de dia estão a ter. E apesar de existirem pais que se mostram desinteressados, demitidos do seu papel e que deixam andar, a maioria dos pais só quer acabar com aquilo. E já agora, vamos encará-lo, ninguém está a gostar, nem a criança, nem a mãe, nem o senhor da caixa que se quer despachar, então porque não ajudar com um sorriso reconfortante em vez de um olhar de desdém. A mãe já se sente envergonhada o suficiente.

Outra das verdades, aparentemente escondidas, é que todas as crianças o fazem. Todas. Num ou noutro momento, por mais ou menos tempo, mais novas ou mais velhas. Porque têm vontades que querem ver realizadas, porque está calor, porque têm frio, porque têm sono, porque são impacientes. E isto acontece com todas as crianças, normalíssimas, saudáveis, disciplinadas, basta ser-se criança. E se alargarmos a análise a crianças com algum distúrbio neurológico, a coisa complica-se. Uma "crise", "birra", "meltdown" pode surgir a qualquer momento, mesmo quando tudo parece estar controlado e nesse momento tudo o que aquela criança e aquela mãe não precisam é de olhares julgadores, cochichos, narizes empinados de outras mães orgulhosas nos seus filhos tão bem-comportados, a quem nunca ocorreu que há coisas que não dependem da mãe e que talvez a sua tarefa até esteja facilitada com os seus filhos tão perfeitos. E daí talvez não.


quinta-feira, 28 de julho de 2016

Quebrar o silêncio

Sempre que alguma mãe é questionada sobre o que é ser mãe, a típica resposta passa por afirmar que é a melhor coisa do mundo, que nunca pensou ser possível amar assim e outras tiradas afins. Se tudo isso é verdade? Claro que sim. Mas não estará na altura de deitar cá para fora o que a sociedade e as outras mães nos forçam a silenciar? A verdade é que não sabemos o que andamos a fazer. Ser mãe é isso mesmo, é duvidar de tudo, é questionar-se de tudo, é "andar às apalpadelas" e é sentir que somos julgadas seja qual for o caminho escolhido. Amamentar ou dar suplemento? Ser permissiva ou autoritária? Muitas actividades extracurriculares ou mais tempo em casa?

Por muito bom-senso e instinto maternal que tenhamos, não nascemos ensinadas, vamos fazendo o melhor que sabemos, mesmo tendo de lidar com todo o universo sabichão à nossa volta, porque quando as avós afirmam orgulhosamente "também criei os meus", esquecem-se que entretanto já passaram 30 ou 40 anos e que as coisas mudaram. Hoje, existem centenas de teorias de como educar os filhos, centenas de manuais de como ser a melhor mãe do mundo, existe a pressão para se ser profissional topo de carreira como se não se fosse mãe e mãe como se não se tivesse emprego. Antigamente, também tinham desafios? Óbvio e muitos, mas quanto aos filhos, os pais é que sabiam e ponto final. Hoje todos têm opinião. A avó, a tia, a melhor amiga, a vizinha, a mãe da colega da escola e até a senhora do café.

E como me sinto com essa parafernália à minha volta? Sozinha. Porque somos levadas a pensar que estamos sós nisto de ser mãe, que ninguém entende o que estamos a passar. E se é verdade que ninguém tem estes filhos, nesta família e com estas circunstâncias, passam por desafios semelhantes, questionam muitas das mesmas coisas. Talvez se partilharmos as histórias desafiadoras, às vezes até desesperantes, e não só corações e floreados, não nos sintamos tão sós.